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De castigo para a bolanha
(ou a arte de mal comandar em toda a selva)
I - as causas
Todas as guerras são assim: uma miscelânea de contrastes e incompreensões. De arrogância e totalitarismo com a chancela de altas patentes insensíveis aos valores humanos, mas sedentas de vitórias que lhes trarão louros e honrarias. II - um mês de horrores na bolanha Fomos brindados com um mês contínuo no mato numa das regiões mais turísticas da Guiné. Onde o fogo de artifício era uma atracção, expelido pelas bocas dos morteiros e pelo matraquear irritante e tenebroso das costureirinhas. III - o regresso, o levante e o churrasco de galinha adormecida
Bom seria que recorressem ao bom-senso e ponderação para que muitos conflitos não chegassem a vias de facto. Será que a guerra em que nos envolvemos durante longos anos com os autóctones africanos não seria conflito evitável? Uma guerra que (e nunca será demais referir), provocou um incontável número de vítimas e deixou mergulhadas nas trevas do luto uma imensidão de famílias.
Não temos capacidade para poder fazer uma afirmação peremptória se seria um conflito evitável. Porque os interesses políticos e económicos que sempre estão subjacentes a estes confrontos, são muito complexos e apenas os analistas e estudiosos destes temas poderão formular opiniões abalizadas.
Todavia julgamos estar à altura de poder afirmar, que dentro dessa guerra para onde nos atiraram e que sentimos na pele, muitas batalhas aconteceram altamente nocivas e traumatizantes para todos os que nelas se viram obrigados a pelejar.
E que com alguma reflexão e respeito pelos valores humanos seriam facilmente evitáveis. Mas a sede de sangue, a demonstração de poder e a ânsia de promoções e benesses, toldava as mentes dos homens que mandavam na guerra!
E levavam a que ditassem directrizes a partir dos cómodos gabinetes, apetrechados com bons whiskys e as delícias do ar condicionado.
E aconteciam desgraças como a Batalha de Bissau a que nos referimos em escrito anterior e, que o colega autor de GADAMAEL em rigorosos e verídicos pormenores nos descreve. Como afirma, embora tudo indicasse que a situação estava a tomar contornos mais que previsíveis de grande violência entre militares até ali amigos e defensores da mesma causa, a HIERARQUIA nada fez no sentido de evitar o desastre que veio a acontecer. E no rescaldo de tão ignóbil refrega mais duas vidas pereceram na pujança da sua juventude.
Mas não terminou assim um episódio tão tristemente marcante: Havia necessidade de dar continuidade às batalhas!
Ainda os corpos dilacerados dos colegas mortos estavam em câmara-ardente, e já as mesmas hierarquias que nada fizeram para evitar o fatídico confronto, ordenavam a formatura dos efectivos na parada do quartel. E em discurso inflamado e dedo em riste, acusavam-nos de promotores da discórdia, quezilentos e arruaceiros!
E que se procurávamos a guerra, então iríamos tê-la muito dura e a sério!
As águas fétidas da bolanha, punham à prova os organismos, com a certeza de que os que resistissem, ficariam imunizados e jamais teríamos necessidade de frequentar alguma estância termal.
E os inseparáveis mosquitos ANOPHELES, portadores dos parasitas do sezonismo, que aos milhões, nos contemplavam com as suas dolorosas ferroadas e se riam do repelente que utilizávamos como antídoto, para os tentar impedir de exercerem a sua nobre missão.
A alimentação como convinha era o mais frugal possível. Umas sardinhas e uns pedaços de atum, envoltos em latas às vezes já ferrugentas, e cujo prazo de validade há muito expirara! Ainda bem que a ASAE não existia nesse tempo, pois certamente nos impediria de saborear tão apetecíveis iguarias.
O opositor, conhecedor do terreno e soberbamente apetrechado a nível bélico, não nos dava tréguas! Ripostávamos o melhor que nos era possível, aplicando os ensinamentos que durante meses e meses nos foram ministrados.
Era porém uma luta desigual, e com um forte odor a castigo, para quem cometera infracção muito grave!
Nas guerras convencionais são sacrificados soldados, mas também coronéis e generais. Esta porém, era uma guerra feita apenas para a soldadesca, sargentos e oficiais subalternos. Havia necessidade imperiosa de os crânios com patente mais elevada, estudarem as cartas e traçarem estratégias de ataque de êxito assegurado.
E sem as lufadas de frescura emanadas dos aparelhos de ar condicionado, as ideias brilhantes ficariam certamente cerceadas.
Íamos contabilizando os dias desse longo mês, que tão lentamente iam passando. Se no período diurno os receios e sobressaltos eram muitos, sempre que o ocaso fazia a sua aparição, as preocupações e cuidados tinham que ser redobrados. Embora nos deslocássemos estrategicamente todos os dias dentro da mata densa, o opositor sabia que nos encontrávamos em zona fácil de calcular.
E brindava-nos com verdadeiros festivais de artilharia pesada, tentando aniquilar-nos dentro do matagal cerrado.
Optávamos por ficar na orla, muitas vezes com o tronco em cima de um tufo de capim, e as pernas enterradas no lodaçal do pântano. E era sobretudo aí que os batalhões de mosquitos faziam os seus festins sanguinários, quais Dráculas em miniatura!
Miraculosamente fomos resistindo sem quaisquer baixas, mas o cansaço era tal que mesmo em meio tão hostil, era frequente ouvir o ressonar do colega do lado, que prontamente era abanado, pois sabíamos que o silêncio era arma tão preciosa quanto a G3 que nos estava distribuída.
Logo que a aurora surgia no horizonte, a passarada contemplava-nos com uma sinfonia de gorjeios, que aliados aos estridentes guinchos dos símios, despertava mesmo os mais ensonados e aconselhava-nos a rumar a outras posições mais abrigadas.
E a meio da manhã quase diariamente, víamos pairar no céu um pássaro, que pela altitude a que voava, mais parecia um agoirento e minúsculo abutre, tresmalhado de algum bando que por aquelas paragens abundavam.
Era a Dornier transportando o Comandante ou outro oficial superior que vinham indagar como decorriam as coisas, e transmitir as suas ordens através do TH 736, o rádio emissor/receptor que sempre nos acompanhava.
Dizia pouco e creio que quem recebia as ordens também pouco ou nada lhes ligava. Estávamos mais interessados em salvar a pele, usar de todos os cuidados possíveis, e esperar o dia do regresso à Base para podermos usufruir do privilégio de um duche retemperador e degustar uma refeição digna desse nome.